tenho um vestido garrido de barras de cores

tenho um vestido garrido de barras de cores
onde escondo os sonhos de muitos autores
teatros bandeiras festejos e coroas de flores
recados retalhos conversas vividas sabidas de cor
que guarda histórias e velhos segredos de muitos amores
pecados de almas diversas vestidas, despidas de dor
eu tenho um vestido garrido de barras de cores


tenho um vestido garrido de barras de cores
onde repouso de dia a noite enfeitada de fitas de dor
que clama por glórias, votos achados e desejos vencidos
promessas, vitórias, de amores calados de fés despedidos
pecados, retalhos, conversas mantidas, ao som do calor
que guarda histórias e versos lembrados de tantos amores
onde pouso a vida em novelos de fita de seda de cor
eu tenho um vestido garrido de barras de cores

ponto cruz

Nas estradas poeirentas da sorte
Bebi um dia a morte num cálice feito concha de mãos
Sentei-me no norte e despedi-me do sul, exausta de mim
E de olhos fechados pendurei-me no abismo da dor
Afagando as chagas com lâminas frias aguardando o fim

Quis então o destino mostrar que era mais forte
E mostrou-me a cruz da esperança enlace doce
Num ponto de cravo vivo urdido e fechado de um norte
Cruzado com um fio de luz bordado em chama quente de sul

adianta-me agora

Adianta-me agora
O sonho, a busca, o desejo de ficar.
Adianta-me agora
O sentido sentido, da partilha do espaço
Que fizemos temperado, com gosto de amanhã
Adianta-me agora e de novo
O sonho, a busca, o desejo de ficar.
Adianta-me agora amor, o futuro

Vem-me buscar

Vem-me buscar.
Quero aninhar-me no teu leito
Descansar nas ondas do teu mar
Colar ao teu o meu odor
Viajar nos teus sonhos com cheiro de mim

Vem-me buscar amor,
Quero enroscar-me, colada ao cheiro do teu peito
Dançar descalça no balanço das ondas do teu mar,
Coser no teu o meu amor,
Viajar contigo nos teus sonhos de fúria, encanto, loucura e cor.

Vem-me buscar amor,
Faz-me ficar,
Entranhar na bacia da tua mata de mistério
Embrenhar-me nos espaços do teu rio
Que revisitaste agora a pensar em mim

Vem-me buscar amor... faz-se tarde.

A comenda

Ficou colado ao banco
exausto de mil investidas
na pretensa cavaqueira
em jeito despretensioso
mas carregado de intenção.
Do muito que disse então
ficou muito por dizer
agora digam lá meus senhores,
a causa de tal omissão
nesta que era dita uma empresa
de tão grande dimensão?
Falo de muros quebrados
nobres costumes, e transformações
estados ditos de direito
homens de muitas razões,
passeio por lugares diferentes
em tom de grande sedução
erguendo sempre a real taça
da glória de tal nação.
Vestida com vestes de festa
orgulho de tal dimensão
por filhos dotados criados
na seio da tradição
fui desfiando glórias,
cantos, louvores e vitórias
e em tão grande proporção
que foi mantido o carrasco
dentro da caixa selada
a salvo de considerações.
Agora digam lá meus senhores
a causa de tal omissão
Quem sabe por r(d)ores de razões
que nos apagam memórias
de cansaço de contendas
contra o vilão gordo e seboso
que teima ter sempre razão.
Aquele que nos veda o caminho
quando desde tenra idade nos impõe diferença
para com outros bichos como nós.
Escondi feridas já saradas,cicatrizes,
amargos de sal em faces secas,
veladas dores suportadas por firmeza.
Dourei a pílula, como quando cantamos o choro
Deixei que me tolhesse a razão,
Inventei a pedra roseta, atingi a perfeição,
quando escondi o carrasco, inebriada pela paixão.
Agora digam lá meus senhores
a causa de tal omissão.

Só me resta ficar sentada a bordar

Só me resta ficar sentada a bordar
No consolo que Matiz não tem urdidura e é em forma repartida
Descoso pacientemente, penas e agruras de matizes escuras
Seguro com firmeza delicada o pano de vida
Deixo deslizar entre os dedos os fios de luz de esperança
E quedo-me enfim.
Só me resta ficar sentada a bordar
Temperos de luz feitos de pontos que inventarei para mim
O Arrendado farei, extraindo, descarnando, fios no tecido
Quer na vertical, quer na horizontal.
Tudo bem contado, buracos formados,
Prendo-os bem presos com a minha linha de bordar.
Ainda preso nos dois lados finco a linha e avanço Escada
Enquanto isso segurarei , Corda é muito simples
É na base da partilha do mesmo buraco
em que acabo o ponto anterior.
Acabada corda posso ir Atraz,
Nem mais, nem menos, o avesso da corda.
Ponto a ponto em relevo pela “urdidura”,
e concluo com uma cobertura, o relevo de Bastido
Sofrido, dorido qual colóide na pele.
Chego ao Chão, sem relevo uma vez que não “urdido”
Aqui o preenchimento é unido chegando aos pontos longos
Como passos que se encontram numa posição oblíqua.
E passo daqui para as Folhas Abertas e Fechadas
Então posso escolher e fazer a divisão
Em abertas e fechadas
Nas abertas, chego-lhe o arremate com cordão no rebordo.
Nas fechadas, uma vez urdidas e fechadas, acho o feito.
Entro assim na Sombra,
E pelo avesso dou-lhe o efeito
Só vindo Atraz para as extremidades.
Só me resta ficar sentada a bordar
No consolo que Matiz não tem urdidura e é em forma repartida.
Este acabei agora mesmo de roubar ao "Citador" que viaja no face.

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

Momentos a so(s)

Descubro-me com o estranho prazer da descoberta
Descubro-me com um novo ser de mim que exala cheiro,
emite sons, exibe formas e caminha sozinho.
Estranho-me no novo caminho que percorro agora
com o dedilhar macio de pés em teclas de vida.
Descubro-me com o doce perfume que me envolve as ancas
que embalo no gingar desta nova canção que trauteio
enquanto me descubro nesta descoberta de mim

Ontem senti passar o testemunho

Ontem esticamos o jantar
percorremos o serão com memórias
passamos testemunhos com cheiros das viagens da infância
a dos meus pequeninos agora com voz de grandes
dos que já falam em passado,
em memória na voz do meu mais velho feito homem
Ontem filho, ocupavas já o lugar que vais ganhando
o vi que o mano caçula te ouvia e bebia os teus saberes
Obrigada meu filho.
Ontem senti passar o testemunho