na plenitude dos dias


Ficam, o som de kissange a embebedar o ar
o odor forte do café em rodopios a penetrar as paredes
e a cobrir a pele num manto escuro e quente.
O som cristalino da voz pequenina a encher o ar
de borboletas coloridas matizadas do ouro
roubados dos fios do sol que se esgueiram pela vidraça.
O meu triângulo de força que arranquei do ventre
e cá fora abraçou o mundo e me dá a plenitude dos dias.
Ficam a conquista e a vitória da vida de cada segundo vivido
na certeza de que o dia é uma noite iluminada

Ontem nove do nove de dois mil e doze o dia 85 de joaquim pessoa

A minha mãe continua saudável. Já faleceu, mas continua saudável. O amor é feroz, comovente, permanentemente provocador. E, dele, sentimos tanto a falta quanto a falta das nossas mães. Elas são as trabalhadoras da coragem. E da mais profunda dignidade. São as grandes personagens femininas que merecem o óscar do filme das nossas vidas. E apesar de serem sempre nomeadas, raramente chegam a receber o troféu.
Vivemos um dia de cada vez. E quando já não temos mãe, vivemos sem mãe um dia de cada vez, o que é dolorosamente pior. Quem nunca conheceu a mãe, não chegará nunca a conhecer-se. E também nunca será reconhecido pela vida porque a ligação que temos com ela é feita através do cordão umbilical. Que nunca chegamos a cortar. Esse acto físico não é mais do que uma ilusão. É por isso que um pai nunca será uma mãe. Pode ser como uma mãe, mas não será a mãe. Nem com esforço. Nem com dedicação. nem com convicção. Nem com amor. Foi isso que a minha mãe me ensinou sem nunca me ter dito nada. E é por essa razão que quero agradecer à minha mãe a possibilidade que me deu por escrever, hoje, este texto.

Joaquim Pessoa,In Ano Comum

volto


Pano, forro, funda, afago, alento
Fado, fogo, falo, colo, isolo e faço meu, o teu temor
Cerro os dentes, mordo a terra, trepo o muro e calo o medo, enfrento a dor
E volto para mim
Então, lambo o teu sorriso no brilho que baila na água do teu olhar
Esqueço a sorte, o meu cansaço e embalo-me na dança do amor
Mergulho no fundo escuro do céu e visto o corpo de estrelas
Curvo a curva, invento ondas, calo a chuva, corpo labareda
Faço luz no encontro da tua com a minha pele
Num tempo sem hora num mundo criado na hora só pra nós
Volto contigo de novo para mim

O Amor, Meu Amor

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto, in "idades cidades divindades"


No três de dezembro a Margarida brilhou


Soltaste as pérolas do colar do teu peito
E dedilhaste uma a uma em cada nota enchendo o ar de azul
Do brilho das safiras do teu rosto
E o espaço vestiu-se de um manto de luz
Com margaridas plantadas em todos os recantos
No timbre dos cachos dourados dos teus cabelos
que ondulavam marcando o compasso em jeito travesso
Foi assim que te vimos encher o coração da mãe
E na tua primeira audição
Estávamos todos presentes como manda a tradição

no dezassete do onze os parabéns ao caçula


Passeei pelas tuas duas décadas
Colada aos teus sinais num afortunado desassossego
De quem reflete o brilho da luz que as tuas marcas me desenham
Num conforto do saber cumprido o ciclo, 
És parte de mim que voa livremente em sua escolha
pelo caminho certo num meu eu desconhecido, onde inventarás um novo mapa
criarás na sábia arte novos tempos, modos de ser e outros usos
caminhos, destinos tantos, glórias e vitórias
novos mundos, à força de ser gente 

Parabéns meu caçula

click


Um dia vou pintar-te de prata num manto de cristais
Escurecer os contornos mergulhando o pincel no pote cheio de noite
E os meus olhos montarão o filme numa pele de três camadas
e no leito caldo mar serei a luz que te trará à vida
e verás o dia
Um dia vou parir a tua imagem para colar-te nos meus dias
E verei o dia

terra minha


Na esperança de te ter descolei o corpo inerte
Que se retirava num pedaço de pele do velho sobrado
Quando no ardor da ânsia de te possuir
Os rasgos de sol te comiam com o seu fogo o teu orvalho

Na esperança de te ter segui o seu falo
a penetrar fundo na fenda fina da húmida muralha
que estreitava o teu continente com ambas as pernas
E vi-o extasiar-se enfim no manto rubro
Que vestia a grande casa do caudal dos longos dias 

E eu esperava

E na esperança de te ter
Madruguei para erguer num insano torpor
a esteira da auréola do futuro em ti, nas matizes dos meus dias
E fi-la assim, casa minha, arca do meu sonho, relicário, quente afago,
Na esperança de te ver,
E esperar o doce húmus, cálice, taça, cadinho meu,
num telúrico desejo de vingar a sede, da senda da noite da espera

E abraçar-te terra minha

hoje um presente do sul que partilho


Soltou-se o brilho das estrelas do olhar
Agarrado ao cheiro que te saía das mãos
Trouxeste-me  a terra em forma de fruto
Saudade amarrada à distância dum tempo
Que trago no peito em forma de concha
amaciado num cuidado de doces lembranças

Aqui me encontro deleitada
Quase em estado de contemplação
Sustenho-me no tempo e me conforto
Entre o odor forte e adocicado feito peito redondo e duro
E a maciez do interior, ventre d’alma generosa
Espessas  águas, caldo morno,
Vísceras de agridoce sabor que me agarra ao rubro quente
Do meu fado, vida, espaço, colo, útero de mim feito

Vinha abraçado aos irmãos um já despido do corpo
Que exaltava o característico dum mais comum feito diferente
E outro ainda dentro do casulo, a adivinhar o festim doce acre
De rebentar os lábios num torpor dolente de adoçar o coração

Ambos relicários do tempo,  assim mos trouxeste
E estendeste-me a rede do tempo que me torna 
inteira


espaço meu


No interior do teu peito
Me encontro casa minha
Fina membrana de pele, pleura flor que me revestes
Onde respiro o puro ar e me proteges
Da dor amargo sal que me confina
À vida que não escolhi por não ser minha

A mim me destinaram o doce mel
Néctar perfumado prado farto
Louros, salvas, leitos alvos, cortes, vestes, honrarias
Bouquets de sois, chãos de nuvens, lençóis de estrelas
Mantos, cetins, veludos, brocados, cavalos alados
Festins, tapetes, toucados, de jaspes bordados
Flores, esteiras de flores, de zimbro licores, 
Ornatos de cores tecidos de pedrarias

É aqui onde me encontro agora casa ventre
Colo, encosto, espuma mar, sabor quente
peito, casa, pleura flor que me reveste
Na vida que escolhi que quero minha

Hoje com Ary "Caminharemos de Olhos Deslumbrados"

Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
O gosto a sol e a sangue dos sentidos.

Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.

No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.

Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!

Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.

Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.

Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
E coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.


Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'


e assim te acompanho


E assim te acompanho

No desenho de contornos num volteio
Onde mansamente me embalo e trauteio
Num teu espaço de teu canto sou provida
do som que buscas na  busca da vida
que  recriaste e compuseste sem temor

Aqui onde já não habita a dor
Se faz canto o desencanto meu amor,
terno, amargo, doce fado, amor meu,
E assim te fizeste Orfeu

No encanto da vida agora enfim
Fias versos, arranjos, notas, e redondilhas
Que enovelas mansamente e que dedilhas
Em odes de recortes, novas trovas, 
Que cantas pra viver em quadras soltas
Na roca feita lira que inventaste para mim

E assim te acompanho

no teu mar


Ouço-te no teu mar
Numa leda canção de outros tempos de amar
E escuto-te no refrão de memórias fortes
Do travo amargo do sal que queres apagar
E quedo-me no (re)verso do sabor do tom que lhes queres dar

Assim te escuto enleada e rendida
Na doce toada do tecido macio das ondas reflectida
Com novos reflexos fiados de um ouro renascido
Neste mar sempre mistério, leito, chão desconhecido
Que tão sabiamente conseguiste reinventar

E assim me achei colada ao ventre do teu mar
Quando decidiste fiar de novo e teimosamente
a rede da tua força de acreditar onde estarei  aqui e sempre
Certa inteira e segura na firmeza de te acompanhar

Com Joaquim Pessoa

Dia 162.

Estou sempre à espera do inesperado. Assim, a dor não dói. Mesmo quando dou a mão a alguém e esse alguém a morde. Faço tudo para ser melhor que eu, ter uma vida intensa mesmo a dormir, separar o bom do bom e, com a parte que escolho, fazer melhor. Tudo é interessante, mesmo o que não é interessante, e o interesse está na descoberta. Temos que nos inadaptar à vida, vamos a isso, tentar cumprir as expectativas, mas não aquelas que esperávamos. Eu gosto disso. e isso conta. Meio irmão contra mim, mau irmão de mim, não consigo emendar um dia entre Janeiro e Dezembro. E ainda bem.
Esta coisa de ser mortal, de ser falível, é a minha afirmação e a minha doença. o que resta, são paliativos e a sua busca. Não sei mudar-me, não me quero mudar. Entre proscritos e idiotas, um proscrito. Odeio a subtileza dos idiotas. Falo sempre para mim quando falo com os outros. E dos outros não falo. Faço de conta. Para comermos todos juntos. Como iguais.

Joaquim Pessoa
Ano Comum

sigo-te

Não poderei fazer o teu caminho
Observo-te apenas e asseguro-me da tua destreza
Prendo por vezes o escuro da terra dos meus olhos, que me irradia o rosto
e aponto-o  na tua direcção a cada sinal de desiquilíbrio
tentando apenas iluminar o espaço, desviar os escolhos, minorar a dor

não procuro caminhar sobre as tuas marcas
apenas mostrar-te o meu cajado que me ampara a já longa caminhada

Boa tarde meu amor, segue as estrelas e conserva-as para os que te seguirão
pois eles aprenderão a eternidade

madrugar

Vou madrugar
E calçar as nuvens macias que aconchegam o céu
Caminhar em silêncio no caminho das palavras
Bordadas em fios finos de luz nos desenhos do destino que tracei
No cântico morno que me adorna o corpo

Vou madrugar
E beber de novo a brisa
Apoiar os cotovelos no beiral dos sonhos
Afagar o sufoco
Alimentar o torpor do corpo, mimar a alma
Resgatar o meu império, meu alimento, a poesia
Nascer de novo com o dia

Vou madrugar e parir um novo dia

sinto o sabor do teu mar a ferver-me nas veias


Sinto o sabor do teu mar a ferver nas veias do labirinto do meu corpo

Sinto o fervor do teu mar no impulso do desejo de te ter

Sinto a acalmia do teu mar no doce toque do s(t)eu (en)canto

Feita voz, cântico, balada, liturgia, encanto que me enternece

Envolve, embala, devora, encanta, sossega e entorpece

Sinto a brandura do teu ser num vulcão que me desassossega

E entrega a uma orgia de veludos de corpos e licores de seiva

Com odores de espanto e paz que me deleita

Sinto, sinto o sabor do teu mar a ferver-me nas veias

aqui onde o calor não dorme, vive a arte da espiritualidade




Aqui onde o calor não dorme
Deslizam figuras de luz a preto e branco
Vestidas com a solenidade e beleza de alma pura
Assim as vejo, assim as aprendo e apreendo
Identidade escolha e razão

No passo lento e forte que acompanho
Da beleza e porte que a todos confere por igual
procuro escutar os corações nos belos olhos de mistério que desfilam
na névoa de poeira de ouro vivo que os ilumina

Dos géneros, a brancura alva do porte se revestem
Os que habitam a kaba negra que sem pejo exibe a negrura da pureza
Casa segura coberta das mais caras jóias  invisíveis aos olhos
Inteira da sua liberdade aprendida na fé dos seus ancestrais

Aqui onde o calor não dorme
E o ouro negro granjeou a tela de todos os sonhos
Numa paleta onde o negro e branco se destaca
Da harmonia onde o velho o novo se cruzam  e entrecruzam 
em malha feita
de mestria no padrão geométrico da arte mais elaborada nascida da raiz.

Aqui onde o calor não dorme
Aprendo o padrão infinito que se estende para além do mundo visível e material,
Génese e alma do feito que parte do simples perfeito ao complexo em constantes repetições
regra, preceito, definição,
Pedra de toque do infinito, natureza abrangente da criação.

Aqui onde o calor não dorme
descubro paz honra orgulho e nobre aspecto
silêncios de grito de ser e de respeito
A arte da espiritualidade